200 ANOS DA INDEPENDÊNCIA DA BAHIA – Itaparica comemorou, com galhardia, a data comemorativa.

Passando dias na Ilha de Itaparica, fomos atraídos pelo convite da comemoração dos 200 anos da Batalha de Itaparica, uma das responsáveis pela Independência da Bahia e estivemos presentes às solenidades comemorativas.

Numa ensolarada manhã de sábado, ao ar livre, tivemos a felicidade de presenciar a abertura dos festejos e ouvir o belo discurso, proferido pela pesquisadora Mabel Freitas, cujo teor reproduzimos a seguir:

Discurso: Bicentenário da Independência de Itaparica

07 de janeiro de 2023

 

“Na terra em que o mar não bate  / Não bate o meu coração / O mar onde o céu  flutua / Onde morre o sol e a lua / E acaba o caminho do chão

Nasci numa onda verde / Na espuma me batizei / Vim trazido numa rede / Na areia me enterrarei / Na areia me enterrarei / Ou então nasci na palma / Palha da palma no chão / Tenho a alma de água clara / Meu braço espalhado em praia / Meu braço espalhado em praia / E o mar na palma da mão

No cais, na beira do cais / Senti meu primeiro amor / E num cais que era só cais / Somente mar ao redor / Somente mar ao redor

Mas o mar não é todo mar / Mar que em todo mundo exista / O melhor é o mar do mundo / De um certo ponto de vista / De onde só se avista o mar / E a ilha de Itaparica”

(Canção “Beira Mar”, de Gilberto Gil)

E kaaró (Bom dia) a todas e todos!

Ẹ kú àbọ̀!!! (Bem-vindas e bem-vindos) ao Bicentenário da Independência de Itaparica!

Num evento repleto de Pretagonistas Ancestrais não podemos (nem devemos!) meramente nos render à língua do colonizador. Assim, Emiwá (Eu estou aqui!) para celebrar 200 anos da nossa vitória itaparicana contra a subjugação portuguesa.

Mais uma página do mesmo livro
Mais uma parte da mesma história
Mais uma telha do mesmo abrigo
Mais uma bênção da mesma glória

[…]

A gente vive a história, vive a gente
Vive a história, vive a gente
A gente vive a história, vive a gente
Vive a história, vive a gente

(Canção “No pé do vento”, de Maria Gadu)

Vivendo a história e celebrando mais uma bênção da mesma glória, relembramos que, em 22 de abril 1500, aportaram em solo brasileiro portugueses com interesses econômicos, que fincaram a bandeira lusitana, tornando-nos inicialmente mais uma mera colônia desse país da Península Ibérica e, em seguida, a mais valiosa dessa nação situada no sudoeste da Europa. Na narrativa idílica da historiografia nacional eleita pelos colonizadores, Pedro Álvares Cabral ainda hoje é considerado o descobridor do Brasil como se não existisse um contexto que antecedesse a essa chegada apesar da população de 4 milhões de indígenas.  

Além disso, Pero Vaz de Caminha declarou, em sua Carta ao Rei Dom Manuel, que seria possível “salvar” aquela gente e Pero de Magalhães Gândavo, no Tratado da Terra do Brasil, atribuiu a ausência dos fonemas F, L e R à inexistência de Fé, Lei e Rei. Salvar de que, Caminha, se o perigo eram vocês que estavam chegando? E você, Gândavo, acredita mesmo que os povos originários eram selvagens, viviam sem ordem e justiça, completamente incrédulos e descrentes. Portugueses, por favor, não ignorarem a autogestão territorial, as filosofias indígenas e toda a engenhosidade dos habitantes locais.

Ora, pois… Sabemos que a tirania portuguesa era genocida: explorava, estuprava e exterminava. Imersos nessa imensa vilania, ciente da magnitude, que lhe é peculiar, os legítimos donos da terra entoam versos assim: “Nasci em uma aldeia no coração do Brasil/ Terra cheia de encantos e de maravilhas mil/ Consagro em meu peito um amor febril/ Por esse amado berço/ Que é o meu país Brasil/ Se é mistério vencer/ Lutarei com ardor/ Sem nunca me render/ A este inimigo agressor/ Minha tribo é valente/ Sou valente guarani/ Não corro da luta ardente/ Com meu defensor Tupã/ Nele sempre confiei, Com ele sempre fui hostil/ Só com ele eu lutarei pela defesa do Brasil”. Salve o hino inspiracional da Associação Cultural dos Índios Guaranis de Itaparica!

Assim o foi! Os portugueses indiscutivelmente não sabiam com quem estavam se metendo… Ao perceberem que precisavam de mais mão de obra, sequestraram do Continente-Mãe (África) pessoas, que – como eu! – tem o privilégio de ter na pele a cor da noite. Dentre as etnias raptadas…

Angola, Congo, Benguela
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
Há um grande leilão
Dizem que nele há uma princesa à venda
Que veio junto com seus súditos
Acorrentados num carro de boi

(Canção ‘Zumbi”, de Elen Oléria)

Mesmo cônscios da sabedoria dos povos do além-Atlântico, que era qualificada e detentora de conhecimentos especializados em construção civil, irrigação por canais, metalurgia, mineração, olaria, plantio, produção de ferramentas tecelagem, serralheria entre outros, essas consideradas cargas humanas negras foram aqui coisificadas e aviltadas. Julgadas como mercadorias que se moviam foram desqualificadas como pessoas incapazes nos aspectos cognitivo e relacional. Só gostaria de lhes lembrar que os colonos ordenavam apenas o que fazer e nunca como fazer. Eles sabiam que trazíamos muita sapiência para constituir a brasilidade e que só teriam o trabalho de ordenar porque nenhum português formou turmas para ensinar às escravizadas e aos escravizados o trabalho a ser desenvolvido.

É importante destacar que, assim como a população indígena, nós (pretas e pretos) nunca aceitamos a condição servil. O movimento disruptivo, insubmisso e insurrecional em prol da nossa libertação nasceu nas fugas, nas compras de alforria, na criação das irmandades, dos terreiros de candomblé, dos clubes negros, da imprensa negra, das escolas, dos quilombos, das diversas lutas sangrentas, como Revolta dos Búzios (1798), Revolta dos Haussás (1807), Revolta de Cachoeira (1814). Ante todo o estrangulamento da nossa condição humana, sempre resistimos com maestria.

Eu tenho Zumbi, Besouro
O chefe dos tupis, sou tupinambá
Tenho os erês, caboclo boiadeiro, mãos de cura
Morubichabas, cocares, arco-íris
Zarabatanas, curares, flechas e altares
A velocidade da luz, o escuro da mata escura
O breu, o silêncio, a espera

Eu tenho Jesus, Maria e José
Todos os pajés em minha companhia
O menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos
O poeta me contou

Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que eu não ando só
Que eu não ando só
Não mexe não

(Canção “Não mexe comigo”, de Maria Bethânia)

Essa certeza da força interior e da proteção espiritual de muitos encantados fazia pulsar a verve libertária do Exército Popular Itaparicano. Se a historiografia brasileira só reverencia o 02 de julho e o 07 de setembro de 1822, estamos aqui para enaltecer a importância da grande batalha que ocorreu em 07 de janeiro de 1823 protagonizada por indígenas, escravizadas, escravizados, libertas e libertos aqui em Itaparica. Os invasores subestimaram o brilhantismo popular e acreditavam que dominariam a cidade, contudo essas e esses populares venceram os 04 (quatro) assaltos ininterruptos.

Segundo o professor Doutor Milton Moura, da Universidade Federal da Bahia, “cerca de 11mil soldados portugueses estavam sem comida, porque o Recôncavo estava fechado para eles; então, eles tentaram concentrar os esforços no sentido de tomar Itaparica”. É importante lembrar que aqui havia muita fartura, como água, carnes e frutas. Só que aqueles pescadores, aquelas marisqueiras, aquelas e aqueles indígenas, aquelas negras, aqueles negros que foram subestimados secularmente, reagiram e conquistaram a tão sonhada liberdade criando armadilhas, ciladas e emboscadas utilizando como armas machados, facas, chunchos e até folhas de cansanção. 

Ao comemorar 200 anos, é urgente que saiamos da superficialidade dessa tão salutar narrativa, porém ainda não devidamente apresentada na historiografia brasileira. É importante que investiguemos a importância de Brejo Verde e Balaustre; conheçamos cada trincheira estratégica como o Forte de São Lourenço, o Largo da Quitanda, a Fonte da Bica, a Ponte do Funil (antes do Estreito do Funil) e as nossas praias Amoreiras, Manguinhos, Mocambo, Porto dos Santos e Praia do Convento (onde ocorreu a aparição de Nossa Senhora da Piedade, Padroeira da cidade, para também contribuir com a vitória itaparicana).

Nesse Bicentenário, homenageamos as biografias dos comandantes Antônio de Sousa Lima, Barros Galvão, Inácio Madeira de Melo, João das Botas e principalmente do Quartel Popular Itaparicano da Inteligência que foi magistralmente tático. Como feminista, bato paó para a força feminina nas pessoas de Maria Felipa (que faleceu em 04 de julho de 1873, completando 150 anos da sua passagem para o Orum), Joana Soaleira, Brígida do Vale e Marcolina. Sabemos que inúmeras outras mulheres deveriam constar nesse rol das aguerridas da Força Libertária, todavia continuam anônimas. Assim como também desconhecemos os nomes dos bravos guerreiros que pescavam para alimentar suas respectivas famílias mas igualmente as nutriam de esperança em prol da liberdade.

A Gestão do Prefeito José Elias das Virgens Oliveira, conhecido carinhosamente como Zezinho Oliveira, deseja que os fachos dessa riqueza cultural se mantenham acesos em nosso pulsante coração e que reverenciemos o maior símbolo da vitória da Liberdade, o Caboclo, que não nos faz esquecer da opressão portuguesa através da simbologia da serpente. Saudemos os caboclos nos 3 âmbitos (o patriótico, o religioso e o étnico) e, em especial, cortejemos o Caboclo Eduardo, fundador da Associação Cultural dos Índios Guaranis de Itaparica! Nossa Gestão almeja que sejamos hoje vedetas contemporâneas vigilantes às tentativas contínuas de apagamento e/ou não reconhecimento dessa nossa tão insigne história.

Encerro este discurso dizendo que a Maria Felipa que habita em mim saúda a Maria Felipa que habita em você. Celebremos diuturnamente a nossa brilhante vitória!!!

Viva o Brasil!

Viva a Bahia!

Viva Itaparica!

Awery/ Mo dúpé (Obrigada!) ]

 

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MABEL FREITAS é Mulher Preta Feminista Antirracista. Doutora em Difusão do Conhecimento (UFBA) com Pós-doutorado em Educação (USP).  Membra da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Pesquisadora do Laboratório Experimental de Arte-Educação & Cultura (USP). Professora universitária e Oríentadora de cursos de Graduação e Pós-graduação. Consultora, Formadora Pedagógica, Palestrante e Organizadora de eventos, livros e periódicos sobre Relações Raciais. Autora de livros, capítulos de livros, artigos, cordéis, poemas e resenhas. E-mail: mabel_freitas@hotmail.com