ALEXANDRA PATROCÍNIO: Joelho Ralado (conto)

JOELHO RALADO

Para minhas alunas adolescentes

 

Começou assim de repente, primeiro uma dor na pélvis, depois uma dor no peito. Fome? Ela já nem sabia mais o que era. O corpo só pedia cama. O som alto estava a ponto de furar os tímpanos, ninguém aguentava mais aquela música, todos já sabiam de cor aquele refrão, cantavam, mesmo sem querer na mente e, muitas vezes, audivelmente: “[…] é que a gente quer crescer e quando cresce quer voltar do início, porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido […]”  [1]

Confesso que eu também me irritava, não sei se porque era forçada a ouvir aquela música chiclete, ou por que ouvir aquela canção me fazia lembrar da minha infância e de como era bom me preocupar apenas com arranhões – troféus de minhas traquinagens infantis. Mesmo sem ter certeza dos meus reais sentimentos por Mocinha, ainda assim, me preocupava com ela, pois já estava franzina, olhos fundos e secos.

Lembro-me de que fizeram de um tudo por Mocinha: levaram-na pra igreja, fizeram campanha do descarrego, novena pra São Lázaro, e até pro homem do chapelão apelaram, não teve Santo que desse jeito. Pra bem da verdade, a dor na pélvis até que passou, mas a do peito só piorou.

‒ O jeito é levá-la pra capital, lá têm médicos dos bons, dizia a madrinha aflita, dona Zilá: têm os que cuidam do dedo do pé, cheio de chulé, até os que cuidam do fio de cabelo da cabeça antes que desapareça.

Antes mesmo que Dona Zilá terminasse de falar, da cozinha, uma voz alta rasgou, era Dona Zezé que gritou:

‒ O melhor é se apressar pra essa menina logo melhorar. Já vi gente morrer com essa dor que não deu tempo nem chamar por nosso Senhor.

Apressaram-se todos! E quatro horas depois chegaram à capital, procuraram o hospital geral, mas lá só atendiam os casos muito mal. Dona Zezé tentou até intervir, gritando, dizia:

– Mocinha está prestes a partir! Não come, não levanta, só canta, dia e noite sem parar, dizendo que prefere o joelho ralar a se apaixonar. Seu doutor, por favor, o que faço pra minha “fia” melhorar?

O doutor se compadeceu com o pedido de uma mãe desesperada e foi até o encontro da garota pra “mode” examiná-la. Ao olhar pra Mocinha fez algumas perguntas e depois a examinou. O resultado da dor no peito era o tal do primeiro amor que chegou de supetão sem nada avisar, até com as bonecas ela parou de brincar. O peito doía, pois não cabia de tanto amor, por isso ela preferia o joelho ralado a ter que sentir dor. Depois de diagnosticada, toda família chorava aliviada; Mocinha logo iria se recuperar, mas, infelizmente, ela ainda não sabia que essa dor no peito todo mundo um dia vai passar e não há doutor ou remédio que possa curar, a não ser o beijo e o abraço de um Romeu que a Julieta resolveu se apaixonar.

Em busca de uma solução, a família voltou pro sertão. O jeito é procurar esse tal de primeiro amor pra beijar e abraçar, pois Mocinha pelo jeito muito tempo não vai aguentar. Procuraram, procuraram, mas tudo foi em vão, perguntaram pra Mocinha o nome e o endereço do cidadão. Mas a menina só respondia:

– Prefiro o joelho ralado a dizer o nome do meu amado.

Nesse momento então, o pai de Mocinha não mais aguentou, gritou bem alto e até ameaçou:

– Ou você me diz onde encontro esse tal de primeiro amor ou currião vai cantar bem alto no seu lombo, minha flor.

Mocinha ao ouvir isso, logo se desesperou, pois com o joelho ralado ela já até se acostumou, mas um lombo esfolado não há quem aguente de tanta dor. Por isso, tratou logo de falar o nome tão esperado que a família não parava de investigar. Era um tal de Luan Santana, cantor famoso da televisão que as meninas não paravam de suspirar. Todas sonhavam acordadas e diziam que só com ele iriam se casar.

Agora o problema estava armado, como convencer esse cantor que Mocinha precisava do seu amor? O jeito encontrado foi esperar o tempo passar, logo Mocinha iria crescer e esse amor desaparecer. Pois, quem nunca um dia não se apaixonou por um artista de Tv?

[1] Letra da música “Era uma vez” de Kell Smith.

ALEXANDRA PATROCÍNIO – Professora de Língua e Literatura na rede pública da Bahia. Graduada em Letraser Especailizada em Educação. Contadora e histórias e autora de livros infantís. Criadora de “Reino da Poesia” (Instagram) e da Revista ifanto juvenil “Reino da Poesia”. Participou de diversas antologias e faz parte de diversas entidades ligadas à Literatura. Ocupa a Cadeira 32 da AFL, tendo como patronesse Georgina Erismann.