EDUARDO KRUSCHEWSKY: “A Bolha de Sabão” (conto)

Era muito estranho o seu mundo! Quando criança brincava só, costumava ver duendes, amigos invisíveis, coisas que ninguém conseguia enxergar, descobrindo nuances nas coisas mais simples, por isso era tido como meio doidinho…

Ensimesmado, ninguém percebia nada de fora do comum porque crianças, uma mais, outras menos, viviam no mundo da lua, tinham um universo desconexo da realidade dura da vida. Muito inteligente, talvez por instinto ou por defesa própria, mantinha comportamento aparente normal, quando em sociedade, não fossem alguns períodos em que se desligava. Nos momentos de solidão entregava-se a devaneios, a cabeça no mundo do faz de contas. As invencionices, para os outros meninos eram uma mera brincadeira, uma mentirinha, para ele tudo parecia real. Cresceu assim, avoado, passeando  em paragens criadas por sua mente enquanto, em sua volta, o dia a dia era vivido.

Foi criado com todo carinho. Com a cumplicidade da mãe, uma viúva, ia levando a vida. Ela pressentia que algo de errado acontecia com seu menino, mas preferia desconhecer o fato. Aos dez anos, aconteceu a fatalidade: O coletivo onde viajavam o pai, a mãe e o único irmão, colidiu de frente com uma carreta e, em consequência, perdeu os parentes de uma só vez. Órfão, sem mais parentes, foi ficando na casa da vizinha que, penalizada, o acolheu. Mas, ficou pouco tempo com Dona Normeide, a boa vizinha.  A pobre mulher, com muitos filhos e parcos recursos foi abandonada pelo marido. Compadecida, sem outra alternativa, a mulher entregou o menino ao Juizado de Menores que o enviou a um orfanato. Ali morou muito tempo, monossilábico, andando como um fantasma pelos corredores da instituição. Os outros meninos caçoavam dele, chamando-o de “maluquete”, “doidinho”, mas ele quase não os ouvia. Curiosamente, enxergava o mundo exterior como se visse TV: quando não queria mais ver nada, desligava. Mas, Deus não abandonara Alonso e o dotara de uma inteligência prodigiosa. Mesmo com a cabeça diferente dos demais, tinha momentos de lucidez. Num desses, raciocinou que precisava ser mais participativo senão terminariam lhe mandando para um manicômio. Mudou, de maneira consciente, o comportamento: passou, com frequência,  a jogar bola, correr “picula”, trocando algumas palavras, enturmando-se com as outras crianças. Iniciou-se nas oficinas profissionalizantes do internato e, dentro em pouco, revelou-se um excelente padeiro e muito bom pintor de paredes. Adolescente, foi sendo preparado para a vida lá fora e, ao completar a maioridade, arranjaram-lhe um emprego e o mandaram enfrentar a vida.

Passou a trabalhar na padaria de Seu Militão. Em pouco tempo, ganhou a confiança do patrão e a simpatia de todos. Acomodado, calado, discreto, foi morar numa água-furtada nos fundos da padaria. Era um esconso entre o salão de fazer massa e o telhado, uma espécie de desvão onde, num espaço relativamente grande, apenas estavam uma cama e uma pequena cômoda. O banheiro ficava nos fundos da padaria e ali ele tomava banho “de sopapo”. Mas, ele não estava só…  Em pouco tempo, passou a abrigar hóspedes imaginários: uma velha de saia rendada, agitada e alegre, sua ajudante na limpeza da moradia e na lavagem de roupas. A velha, dotada de uma grande capacidade de amar, o tratava como um menino mimado. Além dela, mais duas figuras: um menino que o acompanhara na saída do orfanato, insistindo em ficar com ele, além de um homem, meio místico, sempre sentado na posição Ioga, seu confidente, que sabia ouvir como ninguém. Alonso raramente saia e, naturalmente, não recebia visitas. Estas não faziam falta, tinha a companhia da velha, do menino e do místico, quase uma família, criada em sua mente conturbada.

Compadecido da sua solidão, sempre que possível, o seu chefe o incentivava a passear, conhecer outros lugares. De tanto ser incentivado, num dia de domingo, o jovem colocou na bolsa – chuteirinha um calção de banho, uma toalha e um lanche reforçado. Militão ofereceu-lhe carona no fusca até o ponto dos ônibus com destino à Praia de Cabuçu.

O transporte estava meio vazio porque, na noite anterior, acontecera, em sua cidade, uma grande festa com o trio do Chicletes Com Banana arrastando a multidão. Naturalmente, uma parte dos contumazes banhistas dominicais deveria estar dormindo, cansada da esbórnia. Com 15 passageiros, o transporte partiu, dando folga de maneira a que cada passageiro ocupasse duas cadeiras. Postado junto a uma das janelas, desligou-se do mundo exterior, os olhos abertos olhando para dentro de si. Surgida do nada, uma moça, usando shorts curtos, de cabelos encaracolados e olhos verdes como a imensidão do mar, apareceu junto a ele. Olhou-a e desejou bom dia, recebendo em troca um sorriso encantador. A jovem puxou conversa e ele respondeu, em voz alta. Os outros passageiros, ao verem aquele homem falando sozinho, ficaram assustados, procurando sentar o mais longe possível.

Na praia, o tempo todo fez companhia à sua bela fantasia. Íntimos, corriam pela areia, de mãos dadas, rindo à toa. As mulheres, portando balaios, atendiam ao seu chamado e ao realizarem a venda, percebiam o moço falando sozinho, oferecendo as guloseimas a alguém que não viam. Assustadas, fazendo o sinal da cruz e beijando as contas dos colares de obrigação, as mulheres tratavam de sair dali. Infelizmente, o mundo exterior não entendia nada, não via o que ele vi…

Na volta para casa, quase perde o transporte porque os outros passageiros insistiram com o motorista do ônibus que partisse porque havia um maluco no carro e eles não sabiam o que podia acontecer… Alonso estava ali perto e, ao ouvir o ronco do motor, pegou Dulce (era este o nome da moça) pela mão e entrou no coletivo, indo sentar em seu lugar, para desagrado dos outros. Cansado, dormiu para alívio de todos e Dulce meteu-se ninguém sabe onde, pois quando acordou não mais a viu…

Ela passou a aparecer no seu trabalho, sempre nas horas vagas e, às escondidas, Alonso costumava levá-la para o seu quarto, onde ficavam horas e horas entre conversas e risos. Com a presença de Dulce, já não convivia tanto com seus hóspedes. Por isso, a velha, enciumada, foi visitar uns parentes; o menino, após uma despedida cheia de lágrimas, foi convencido a voltar para o orfanato e o místico alegou que partia em viagem com Paulo Coelho, fazendo a caminhada de Santiago de Compustela. Alonso deixou aflorar, cada vez, mais o seu comportamento dúbio. O patrão, desconfiado, passou a notar algo de errado com o seu padeiro, outrora tão eficiente. Disfarçadamente, procurou observá-lo, motivado por fatos que estavam acontecendo com muita frequência: um dia, o pão saía solado, no outro com sal demais e até fora perdida uma fornada inteira, coisa que nunca ocorrera.

Um dia, Militão atendia ao balcão quando ouviu a risada alta… Sabendo que o empregado estava só, largou por instantes o atendimento e entrou de vez no salão de fabrico, surpreendendo o jovem sovando a massa e falando, numa animado tête-à-tête com alguém. Perguntou:

– Pelo amor de Deus, Alonso, você está falando sozinho?

– Oxente, num tá vendo, não, patrão? Eu tou conversando com Dulce. Dulce, este é meu patrão… Seu Militão, me desculpe, mas ela num tem culpa. Foi eu quem convidei ela. Mas, Dulce não tá atrapalhando em nada, né, Dulce?

O homem deu as costas, convicto de que o empregado estava maluco; ficou angustiado ao constatar que não podia mais confiar no rapaz. Tratou de arranjar um outro padeiro para o qual foi passando as funções. Quando se sentiu seguro, chamou Alonso e o despediu, sem maiores explicações. Manso por natureza, o pobre coitado pegou a pequena maleta de couro e saiu para a rua, sem destino. A notícia de que  ele “não batia bem” correu pela cidade e todas as portas se fecharam para ele. Ninguém queria empregar um sujeito que conversava com uma visagem ou sabe-se – lá – o quê…

Inevitavelmente, faminto e desamparado, desceu as encostas da insanidade. Tendo  que morar na rua,  passou a dormir embaixo de marquises, por sobre papelões, apertando o corpo imaginário de Dulce de encontro ao peito, já sem disfarçar a loucura cada vez mais evidente. Foi difícil para ele entender quando, um dia, Dulce alegou que era uma fada e teria que partir, tinha obrigações no seu reino encantado. Prometeu que voltaria, um dia, para buscá-lo. Ao acordar, Alonso não mais a viu e chorou copiosamente. Dali em diante, andrajoso, mal cheiroso, sujo, mudo, passou a ter a companhia de, apenas, cães vadios, com quem dividia o conteúdo das latas de lixo. Os moleques faziam troça, atiravam pedras e ele não reagia. Perambulava com uma única esperança: reencontrar Dulce. Costumava ficar horas olhando o céu, perguntando-se em que estrela estaria a sua fada. Com resignação, enfrentava as intempéries ao relento até que, num dia de muitos relâmpagos, trovões e ventos forte, ficou completamente encharcado. Como resultado, contraiu uma pneumonia. A doença, uma vez instalada, foi minando pouco a pouco sua resistência. Agora, o único som que emitia era o da forte e insistente tosse.

Numa manhã de um dia de muito sol, queimando de febre, sentiu a sensação de algo de muito bom acontecera. Levantou o corpo alquebrado e, caneca em punho, foi pedir um pouco de café no bar da esquina. Foi quando enxergou, ao longe, a enorme bolha de sabão e dentro dela, Dulce. A sua Dulce! Não mais a moça de cabelos encaracolados e de shortinho, mas uma fada, a coisa mais linda! Varinha de condão, vestido branco e vaporoso, sapatinhos de cristal e um sorriso que iluminava toda a cidade.

– Dulce, você voltou?!

– É, Alonso, vim te buscar. Vem pra bolha, vem, querido. Vamos para o país das fadas. Lá você vai ser você. Vai viver sua realidade. É um mundo bom e calmo, onde tudo é como um arco-íris, um mundão de cores que chega a doer nas vistas…

O homem, ao se aproximar do glóbulo, percebeu o vento empurrando a visão para mais longe, para o meio da rua. Ao ir atrás, quase é atropelado por uma ambulância em disparada. Assustado, o motorista colocou a cabeça fora, chamando Alonso de louco e xingando-lhe a mãe, mas o insano nada ouvia, no seu mundo irreal. O vento foi empurrando a bolha para mais e mais longe e ele, tiritante de febre, ia seguindo, seguindo enquanto os pedestres paravam para ver aquele desvairado falando sozinho, gritando, fazendo acenos  como se pedisse a alguém que esperasse. Sempre em frente, chegaram ao viaduto da entrada da cidade. Ali, de repente, o vento parou de soprar e a bolha de sabão ficou pendurada, perigosamente, na balaustrada. Lá dentro, Dulce sorria e lhe estendia a mão num convite.

Num momento de lucidez, o louco chegou a perguntar a si mesmo o que fazia ali, mas a febre muito forte jogou-o de volta aos delírios, fazendo com vivenciasse de vez a sua realidade irreal. Dulce… A bolha… Aquele era o seu habitat, não um mundo que via como quem assiste TV, um mundo que aprendera a desligar há muito.  Aproximou-se, subiu na murada lateral e ficou parado. Equilibrando-se, o olhar fixo na amada. Como se mágica fosse, a bolha escancarou uma porta e por ela Alonso entrou, dando um passo à frente.

Enquanto chorava de alegria e estreitava definitivamente sua Dulce nos braços, o seu invólucro carnal estatelou-se no asfalto, lá em baixo, esvaindo-se em sangue. A bolha, então, movimentou-se e deu uma última volta panorâmica, como se estivesse dando adeus à cidade. Ele, puro espírito, tonto de felicidade, em paz consigo mesmo, de cima via tudo, maravilhado, junto a Dulce. Olhou nos olhos dela e estreitando as delicadas mãos da sua fada em suas mãos, beijou-lhe amorosamente a fronte. Lá em baixo do viaduto, um invólucro carnal sanguinolento deu o seu último suspiro e Alonso, etéreo, partiu em viagem sem retorno para o país das fadas…

           

 EDUARDO KRUSCHEWSKY é poeta, escritor e jornalista ,   tem diversos livros publicados, além de três HQ de tema   histórico e  escreveu  e  interpretou peça  de teatro relatando a passagem de Vinicius de Moraes pela Bahia.   Atualmente, é o presidente da Academia F. de  Letras.