O ROMANTISMO FEIRENSE E A SEMANA DE ARTE MODERNA – Wagner Bonfim (artigo)

Há 100 anos o país foi surpreendido por uma nova concepção de cultura e arte com o lançamento em fevereiro de 1922 em São Paulo da Semana de Arte Moderna, movimento esse denominado de Modernista.

Feira de Santana viria a incorporar tardiamente esse novo estilo literário, artístico e arquitetônico, sobretudo por conta das limitadas formas de comunicações da época, bem como pelo relativo isolamento geográfico dos grandes centros. Esse artigo incorpora alguns elementos teóricos sobre alguns estilos literários que possibilite uma discussão dos críticos literários sobre tema apaixonante como é o modernismo no Brasil.

          Entretanto, para construir esses elementos discursivos faremos uma breve e didática revisão dos estilos que o antecederam desde o fim do século XVIII até o fim do século XIX, sobretudo da literatura, conceituando-os e caracterizando-os dentro de um contexto histórico, político e econômico social, os períodos em que surgiram e no qual se afirmaram, identificando alguns desses atores e suas representações na paisagem social.

          O momento histórico do surgimento do Romantismo no Brasil coincide com a chegada da família real portuguesa no início de século XIX. Esta, ao mudar a sede do Vice Reino de Portugal da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro viria  a promover mudanças substanciais na então capital da república, com amplo crescimento econômico em virtude da abertura dos portos para comercialização estrangeira, com o desenvolvimento das artes, da arquitetura e da economia do Rio de Janeiro em especial. Inúmeras realizações foram promovidas tais como a criação da Imprensa Nacional, a Biblioteca Nacional, dentre outras ações de cunho econômico como a criação do Banco do Brasil em 1808 além de transformar a imagem do Brasil de um mero copiador dos estilos, gostos e tendências europeias buscando paulatinamente uma identidade própria.

           O Romantismo expresso na literatura e nas artes refletia, entretanto, o modo de representação social típico da burguesia, uma vez que, detentora dos meios de produção, que no caso do Brasil eram, sobretudo, os espaços produtores da cultura da cana de açúcar e do café. A Bahia dispunha de uma pequena burguesia rural que seria aos poucos ampliada e fortalecida enquanto determinantes políticos e econômicos, tendo no crescimento da pecuária leiteira e de corte em direção ao interior e Feira de Santana como importante centro de expansão.

          O Romantismo enquanto estilo literário era expressado pelo desejo de controle de uma natureza perfeita ou idealizada, de um egocentrismo clássico onde o mundo girava ao redor desse indivíduo, onde as emoções e a subjetividade eram sentimentos marcantes. O ideal de vida se assentava na figura do homem como um herói, refletindo uma cultura patriarcal milenar e também embasada na cultura judaico cristã, onde a mulher desempenhava um papel secundário e submisso. A percepção do mundo concreto, duro, difícil, promovia uma fuga dessa realidade. Sonhar, morrer ou enlouquecer seriam a transposição para um nirvana, para uma plenitude.

          Nesse período inicial a poética dos primeiros românticos, atores sociais, escritores, foi forjar um modelo de homem brasileiro, um herói tupiniquim saído das suas origens primitivas como o representante ideal.    

          Essa assertiva encontra refúgio na obra de autores como José de Alencar, advogado e jornalista, tendo nas personagens de Peri e de Iracema no seu livro O Guarani. Na obra de outro poeta, Gonçalves Dias, maranhense, advogado formado em Coimbra, onde compôs o poema Juca Pirama e Canção do Exilio pode-se identificar essa conotação idealizada.

         “Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabiá/As aves que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá.”

          Essa fase foi denominada de indianista, pela centralização do homem nativo e pela apologia às belezas naturais.

           Os críticos e historiadores demarcam esse estilo acima de um segundo momento do Romantismo, fase em que se identificavam na literatura uma profusão de sentimentos que afloravam aos borbotões na prosa e na poesia a exemplo do clássico poema de Casimiro de Abreu – Meus Oito Anos;

          “ Oh! Que saudades que tenho/Da aurora da minha vida, /da minha infância querida/-que os anos não trazem mais! “

          Vê-se claramente nesses versos acima a fuga da realidade, do presente, para um ideário inatingível, uma das marcas características desse estilo. Fase essa delimitada como  de consolidação do romantismo.

          E por fim a preocupação com o contexto social na vertente Condoreira do poeta Castro Alves e do poeta Luiz Gama já na segunda metade do século XIX. Esse baianos tiveram na defesa da abolição da escravatura a sua referência poética maior. Luiz Gama, filho de pai branco e mãe negra, formado em direito, detinha uma poesia lírica, mas também usava da sátira como bandeira de luta escravista. Muitas vezes se apropriava dos elementos próprios da raça negra ironizando como forma de denuncia que pode ser visto em;

          “Ciências e letras/ Não são para ti/ Pretinha da Costa/Não é gente aqui.”

          Já o discurso do considerado Poeta dos Escravos, homem branco oriundo do recôncavo baiano, que não terminou o curso na Faculdade de Direito do Recife e, como todos os românticos, era dado às excentricidades, exageros na oratória e celebres boemias, mas que revelava sua indignação pelas torpezas da escravatura ao proferir os seus discursos liberais questionando a justiça e ansiando por um republica no pais;

         “República!… Voo ousado/Do homem feito condor/Raio de aurora inda oculta/ que beija a fronte ao Tabor!

          A partir dessa terceira fase do Romantismo, começa a quebra do formalismo poético com a abolição da rima e da métrica, bem como passou-se a utilizar de uma linguagem informal e regionalista inscrita na prosa e na poesia.

           Mas, no meio do caminho, duas escolas se interpuseram até desaguar, duas décadas depois, com a chegada da Semana de Arte Moderna. As duas escolas em questão foram o Simbolismo e o Parnasianismo. Os Simbolistas, outra influência europeia, tinha entre várias de suas caraterísticas, algumas que se sobressaiam, tais  como; a subjetividade, o misticismo, o culto ao transcendental e a musicalidade poética, o pessimismo, o amor, a morte, a razão e a loucura. Assim como um In e o Yang oriental e, pôr fim, a oposição ao formalismo acadêmico, à La Olavo Bilac, dos parnasianos.

          Essa escola literária ainda respirava os ares, as influencias europeias assentadas em Baudelaire e Mallarmé. Opunha-se ao parnasianismo, ao realismo e teve como representantes maiores Cruz e Souza e Augusto dos Anjos, este último considerado um pré-modernista como visto em seu livro, Eu e outras Poesias, onde determinadas expressões foram consideradas até antilíricas.

      “Se a alguém causa inda pena a tua chaga, /Apedreja essa mão vil que te afaga, /Escarra nessa boca que te beija!”

          Usavam e abusavam das figuras de linguagem com sua lírica intima desconectada da realidade. Sinestesias, aliterações, onomatopeias, assonâncias, impregnavam a poesia desses autores citados, conferindo uma musicalidade ímpar, sobretudo aos sonetos.

            O Brasil da década de 20 do século passado saia de uma pós guerra e de uma pandemia de gripe espanhola. Iniciava-se naquele período um ciclo industrial no Sudeste do país, onde os corredores de produção da cultura do café e do açúcar para exportação viriam a se intensificar com o surgimento de uma burguesia rural naqueles estados do país, ocupando a paisagem social, política e cultural, sobretudo em São Paulo.

          O Modernismo assume então as rédeas da linguagem literária, das artes e da forma em todos os espaços com a libertação da estética, da quebra do tradicional, com a liberdade de experimentação, o uso de versos livres na poesia, sem forma fixa ou pontuação e com a valorização do dia a dia.

           Contudo, palavras minhas, nesse estilo haviam influencias das tendências europeias nas artes e letras, ou diria melhor, de influencias europeias. Surge em fevereiro de 1922 a Semana de Arte Moderna com o Movimento Antropofágico e o Manifesto Regionalista com Oswald de Andrade, Anita Malfati, Mario de Andrade. Mesmo escandalizando todos os segmentos acadêmicos anteriores, chamados por esses representantes de “passadistas”, poderia considerar que o Modernismo foi um movimento típico de representantes da burguesia paulistana. Verificamos na obra de Mário de Andrade, a inovação estética e a busca por um formato originalmente nacional da língua portuguesa falada no Brasil como expresso no poema Pronominal;

          Dê-me um cigarro/Diz a gramática/Do professor e do aluno/ E do mulato sabido/Mas o bom negro e o bom branco/da Nação Brasileira/ Dizem todos os dias/ Deixa disso camarada/ Me dá um cigarro.”

          Mario de Andrade era um crítico literário, contista, romancista, musicólogo e professor, fazia portanto parte dessa mesma pequena burguesia inebriada pela máquina, pelo desenvolvimento industrial trazido com a revolução industrial inglesa e que transformava a capital econômica do país, São Paulo. Instala-se nesse período a poesia moderna brasileira com uma marca de nacionalismo puro, com o uso de uma linguagem coloquial. Pauliceia Desvairada, seu primeiro livro, se inscreve como o marco da primeira fase do modernismo brasileiro. 

     “Eu sou um escritor difícil/Que a muita gente enquizila, /Porém essa culpa é fácil/De se acabar duma vez;/É só tirar a cortina/ Que entra luz nesta escurez.”

          Macunaíma (1928), obra revolucionária  do modernismo coloca em cena o anti-herói, o homem imperfeito, dissociado dos modelos greco romanos na estética e no comportamento, incorporando elementos da cultura nacional, elemento de estudos socioantropológicos.

          A segunda etapa do modernismo foi seguida da chamada fase de Consolidação com temas nacionais e regionais na prosa e poesia de Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Jorge Amado, sem esquecer Manoel Bandeira e mais tardiamente a fase Regionalista com Ariano Suassuna e Guimaraes Rosa.

          Após dissertar brevemente sobre essas escolas, devemos correlacionar essa nova forma de expressão das artes, da arquitetura e da literatura no cenário baiano e especificamente em Feira de Santana.

          A cidade de Salvador em início do século XX viria a sofrer transformações na sua estrutura urbana, econômica e social com a chegada ao poder do político JJ Seabra. Intervenções na infraestrutura, na saúde e na paisagem, no seu espaço urbano como forma de ajustar-se como centro desenvolvido, perdido o seu prestigio desde o século passado quando da mudança da capital do Vice Reino para o Rio de Janeiro.       Nesse processo de mudança identificamos o surgimento de artistas como Maria Celia Amado (1921) e Mario Cravo Junior (1923) como os primeiros modernistas baianos. Dessa geração de pré e modernistas devemos destacar a figura de Godofredo Filho, oriundo de Feira de Santana mas que desenvolveu sua trajetória profissional em Salvador tendo sua obra poética caracterizada sobretudo como memorialista. A múltipla atuação de Godofredo Filho como servidor público e também por um período como professor na antiga Escola Normal (CUCA) em Feira de Santana,  imprimia na sua poesia um misto de memória, saudosismo, degradações, com imagens da infância, da família e da vida no interior visto em Poema a Feira de Santana datado de 1926 ( Melo,C.T.S.2012)

 

          Essa corrente literária, pré modernismo, ganharia força em Salvador com a criação da Revista Arco e Flexa que vigeu entre 1928 e 1929. A Revista era um espaço de difusão de ideias, que embora atrasadas em relação ao sudeste, ventilava a juventude de Godofredo Filho e também de um outro jovem feirense chamado Eurico Alves Boaventura, então com 17 anos e estudante do Ginásio da Bahia.

         “Da força da grana que ergue e destrói coisas belas” (Caetano Veloso), assim poderia descrever certos trechos da obra de Godofredo Filho, na sua luta contra o mito da modernidade na dicotomia destruir/construir. Seu trabalho ao longo do IPHAN apresentou em diversas ocasiões um propósito de higienizar (reformas internas de equipamentos públicos mas com a preservação das fachadas) a paisagem social sem a preocupação de manutenção dos seus atores, excluindo-os, do processo socio econômico. Essa assertiva particular se constata com a reforma do Centro Histórico de Salvador/Pelourinho ocorrida no governo de Antônio Carlos Magalhães em final do século passado. Godofredo Filho em um dos seus poemas, discorre sobre manifestação da populares como as  atividades religiosas nos Terreiros de Candomblé da cidade de Salvador;

    “ Zangam na sala como taiocas/ -êh! Êh!/Olhos abertos, esbugaslhados,/-êh! Êh!/ os negros minas em reboleios,/ trancos, meneios/ saracoteios” ( Candomblé -1923).

          Em Ladeira da Misericórdia (1948) debate-se entre o senso conservador da atuação profissional no IPHAN e o poeta múltiplo (HOISEL, E.2019) em versos ácidos modernistas, mas com a sonoridade simbólica da escola anterior.

        – Foste rua de prosápia/e hoje és ladeira de negras, / de mulatas sifilíticas/ de soldados e bêbados, / ruas de miseras putas”.

          Há um certo intuito de “embranquecer” a cidade de Salvador no trabalho desse ator/autor, vez que as diferenças sociais existentes entre os altiplanos da antiga fortaleza medieval, cidades baixa e alta, eram geradoras de problemas sociais como se depreende nos versos acima e onde a negação desses conflitos passaria pelo direcionamento de certas populações para áreas longínquas.

          Como poeta pré ou modernista dispondo da capacidade de intervir na paisagem urbana ou vítima das transformações socioculturais esforça-se na sua poesia em manter-se vivo como em;

“minha terra boa/minha terra minha/é lá que eu quero dormir/ ao acalento daquele céu tão manso/dormir o meu grande sono sem felicidade ou tortura de sonho”

          Vê-se nesses versos uma rejeição ao progresso, onde ele se aprisiona ao passado, ao bucólico de uma Feira de Santana que iniciava uma franca transformação, tendo sua paisagem social ainda como imagens paralisadas na memória. Por outro lado, retomo aos próceres do modernismo com Manuel Bandeira em Poesia completa e prosa que ao dizer;

“eu faço versos como quem chora/De desalento…de desencanto…/Fecha o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente…/Tristeza esparsa…remorso vão…/Dói-me nas veias. /Amargo e quente, /cai gota a gota, do coração” mostra uma estrutura poética parnasiana/romântica enquanto Godofredo Filho, embora quebrando o formalismo da métrica e da rima, acolhe os sentimentos profundos de agonia com o presente em um ideário parnaso.

         Essas assertivas levadas a efeito até aqui, deixo para análise dos críticos literários, estudiosos de suas obras, para considerar o debate, se Godofredo Filho era um modernista genuíno ou um simbolista tanto quanto o bardo Manoel Bandeira e Vinicius de Moraes foram considerados modernistas, mas com resquícios parnasianos e românticos em diversas poemas, conservando o formalismo clássico dos parnasos.

          No decorrer da primeira metade do século XX uma outra figura viria a se destacar por sua obra modernista, no caso Eurico Alves Boaventura. Tendo migrado de Feira de Santana, como inúmeras figuras da pequena burguesia rural, para estudar na capital, acaba em Salvador envolvendo-se em grupos literários oportunidade em que viria a participar da Revista Arco e Flexa ainda na juventude. Dado a suas viagens para Rio de janeiro, São Paulo e Paraíba, consegue interagir e receber as novas influencias do que se mostrava como novo na literatura, nas artes e arquitetura nesses estados. Sua lírica juvenil era marcada por uma valorização do novo, da máquina e da civilização que emergia dos grandes centros. No poema Dínamo se vale de figuras de linguagem e canta a modernidade imiscuída com sentimentos íntimos profundos;

     “Ralam o ar, rodopiando em roucos ronrons rudo, / as ruivas, rúbidas rodas raivosas, rápidas, ao fogaréu…”

          Eurico significava o espaço social em que vivia, contudo, permanecia vinculado a reminiscências de sua vida no sertão baiano. Formado em direito, tornou-se juiz em comarcas do interior e tinha na figura do vaqueiro, nos seus costumes e os hábitos do verdadeiro homem interiorano do sertão como imagens vivas expressas nos seus textos memorialistas.

         Evelina Hoisel ( 2019) nos fala da intertextualidade, condição em que um texto se  superpõe ao outro na obra de um a(u)tor poético e social. Chama atenção para a relação da “atividade artística do escritor não se descola da sua influência política” citando SANTIAGO,2004 a pp.66 e ss). Assim, vemos ao longo desse artigo a representação artística de elementos da burguesia com lugar de fala na paisagem social, determinando uma poética mas sobretudo uma narrativa política.

          Outro aspecto que pontuo para debate é o da Estética da Recepção (ZILBERMAN, R.2011) focado no texto e no leitor e não apenas no a(u)tor e sua representação em determinado cenário histórico.

          Assim, podemos perceber que o escritor não tira do nada seus textos. A sua inspiração tem vida e a vida tem cultura, tem social, tem história, é real. Caso contrário a fala torna-se amorfa, sem substancia. A criação literária em escala taylorista, isolada e descontextualizada da esfera social não, necessariamente, encontra ressonância no processo de comunicação – produção, mensagem e recepção (leitor).

          Um estilo literário pode estar contido dentro do trabalho de um a(u)tor, sua atuação na paisagem, seu objeto, sua lírica, as ferramentas lexicais, intervindo no espaço social, não se mostrando necessariamente engessado por uma classificação acadêmica formal.   

           Vemos que alguns autores genuinamente feirenses bem como outros de expressão nacional foram fruto dessa intertextualidade, cujas sombras de estilos  viriam a se misturar com novos símbolos e significados deixando suas marcas num século marcado pela hibridização e fluidez.

 

WAGNER BOMFIM

Cadeira 09 – Patrono Honorato Bonfim

19/03/2022